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LÍQUIDOS "EM PAUSA"

 

16 de Outubro 2003 -  Tacos de golfe de alta performance. Facas hiper-afiadas. Melhores fibras ópticas para as telecomunicações. Materiais leves e resistentes para os veículos espaciais do futuro.

 

O que têm todas estas coisas em comum? Podem ser obtidas usando líquidos super-arrefecidos: materiais fundidos que são arrefecidos até abaixo do ponto de fusão/congelação mas que, por processos especiais, são mantidos na fase líquida.

 

Ao evitar o normal congelamento, pode-se levar o líquido a tornar-se num tipo de sólido muito diferente do habitual. Normalmente, enquanto se dá o arrefecimento,  as moléculas de um líquido vão-se dispondo numa ordeira rede cristalina, como soldados formando numa parada. Os líquidos super-arrefecidos solidificam de uma forma totalmente diversa: tornam-se mais espessos e acabam por deixar de fluir – como se fossem líquidos "em pausa". O resultado deste processo é um sólido cujas moléculas mantêm um arranjo amorfo, desordenado, semi-aleatório. Esta estrutura molecular, que se encontra por todo o lado, nos vidros das nossas janelas, mas que também é possível obter nos metais, tem propriedades especiais. As ligas metálicas amorfas podem, por exemplo, ser duas vezes mais fortes e três vezes mais elásticas que o aço.

 

Direita: Comparação da estrutura molecular de sólidos normais e amorfos.

 

Existe um grande potencial para produtos obtidos a partir destes líquidos, apesar de eles serem notoriamente difíceis de manejar.

 

Um líquido super-arrefecido é uma forma delicada e instável da matéria. "Quer" desesperadamente cristalizar, transformar-se num sólido normal. Tudo o que é preciso é algo que sirva de núcleo de cristalização: a superfície cristalina de um recipiente, uma partícula de poeira... e num instante o líquido congelará na forma sólida habitual. Por outras palavras, trabalhar com líquidos super-arrefecidos é um pouco como fazer malabarismos com ratoeiras: podem facilmente "disparar" e arruinar o espectáculo.

 

Espantosamente, há fabricantes que, mesmo assim, conseguiram obter produtos vendáveis a partir destes líquidos: componentes para computadores, tacos de golfe, raquetes de ténis. Há até um colector de vento solar na sonda Genesis da NASA feito de metal amorfo super-arrefecido.

 

Esquerda: Alguns dos objectos que foram aperfeiçoados graças aos líquidos super-arrefecidos.

 

Mas estas coisas são apenas o começo. À medida que os engenheiros aprofundam os conhecimentos sobre as propriedades e comportamento dos líquidos super-arrefecidos, aumentam também a capacidade de controlar estes materiais. E é aqui que a ISS pode ajudar. Na imponderabilidade da órbita terrestre, torna-se possível estudar fluidos fora de recipientes cujas paredes podem desencadear uma cristalização prematura.

 

Edwin Ethridge, um cientista de materiais do Marshall Space Flight Center da NASA, e o professor William Kaukler da Universidade do Alabama em Huntsville estão a trabalhar numa forma de medir a viscosidade de fluidos livres a bordo da ISS. A ideia é simples: se duas gotas flutuantes de um líquido se tocarem, fundir-se-ão numa única gota, maior. A velocidade desta união é, em parte, controlada pela viscosidade – gotas de água, por exemplo, unir-se-ão muito mais depressa que gotas de mel. Portanto, medir a velocidade de junção das gotas permite saber a viscosidade do líquido observado.

 

Como os líquidos super-arrefecidos espessam tremendamente ao arrefecer, é fundamental, para os poder trabalhar, obter medições precisas das viscosidades. A fricção entre as moléculas de um destes fluidos pode disparar num factor de 1015 enquanto se dá o arrefecimento. Sem gráficos que mostrem a evolução deste espessamento com a diminuição da temperatura, dificilmente os engenheiros conseguirão moldar estes líquidos em formas utilizáveis.

 

Direita: A velocidade a que se fundem as gotículas depende da sua viscosidade.

 

Para compreender porquê, imagine o que aconteceria se desenhasse um molde com uma estrutura complexa, com ângulos e passagens estreitas, para utilizar com um líquido super-arrefecido tão espesso como o óleo vegetal. À medida que o líquido fosse vertido para o molde ele poderia arrefecer um pouco, e tornar-se inesperadamente mil vezes mais espesso, ficando semelhante ao mel. O resultado, provavelmente, seria mais semelhante a uma peça de arte moderna do que a um produto vendável.

 

O objectivo final da pesquisa de Ethridge e Kaukler é a obtenção de dados para a elaboração dos gráficos de viscosidade versus temperatura. A experiência que conceberam, com o nome de Medições de Viscosidade por Coalescência de Fluidos (FMVM), pretende demonstrar a aplicabilidade do conceito, e será realizada em breve. Mostrará como podem ser realizadas medições de viscosidade de fluidos não confinados no ambiente de microgravidade da ISS.

 

A Física é, por si só, bastante difícil, mas os cientistas tiveram que enfrentar outro problema: uma vez que a frota de vaivéns espaciais está parada, a capacidade de enviar material científico para a estação orbital é bastante limitada; e assim, houve que repensar a experiência utilizando materiais que pudessem ser acomodados numa Progress, a nave de reabastecimento russa, ou que já estivessem disponíveis a bordo da própria estação.

 

Afirma Ethridge: "Seleccionei 8 líquidos para testes. Enchemos seringas com eles, e seguirão para a estação espacial numa nave Progress." Um dos líquidos é mel vulgar. Apesar de cristalizar muito devagar, o mel é realmente um líquido super-arrefecido. E funciona perfeitamente para demonstrar que este método da "gota flutuante" permite a medição precisa da viscosidade de um líquido.

 

Abaixo: A resistência e a elasticidade dos sólidos amorfos ("ligas vítreas") são superiores às de muitos outros materiais.

 

A experiência consiste no seguinte: o mel (ou outro dos líquidos seleccionados) será expulso da seringa de forma a passar para fios muito finos. "Um fio chamado Nomex está disponível na estação, e pode ser usado para confinar e controlar as gotas de líquido. Também poderá ser usada solda em fio fino para manipular as gotas," nota Ethridge. Um membro da tripulação aproximará vagarosamente os fios, cada um com uma gota agarrada, de forma a que elas se toquem e fundam. Uma câmara de vídeo a bordo da estação gravará a evolução dessa junção, que passará primeiro pela forma de amendoim e evoluirá para uma esfera perfeita.

 

Na Terra, os investigadores examinarão cada instante da gravação, de forma a determinar exactamente a velocidade a que se deu a união das gotas. Uma vez que a viscosidade das amostras é conhecida, poder-se-á comparar o valor medido no teste com o valor real, e avaliar a capacidade do método.

 

Os planos actuais são para que a experiência FMVM seja conduzida durante a Expedição 8, prevista para começar em fins de Outubro. Este trabalho pode oferecer uma nova forma de conhecer a viscosidade de líquidos super-arrefecidos. Depois disso... ninguém sabe, mas os tacos de golfe e os utensílios de cozinha são provavelmente apenas o começo.

 

LINKS

 

Office of Biological & Physical Research  da OBPR. O Gabinete de Pesquisa Biológica e Física da NASA financia a pesquisa em física fundamental para o benefício da humanidade, na Terra e no espaço.

Glass from Space  da Science@NASA. Um artigo sobre a investigação em microgravidade com aplicação no vidro, um tipo de líquido super-arrefecido.

Studying undercooled metals in space  da Science@NASA.

Para saber mais acerca de viscosidade: William Johnson, professor da Caltech especialista em sólidos amorfos e fundador da companhia Liquidmetal Technologies, salienta que existem alguns métodos para medir a viscosidade de líquidos super-arrefecidos no solo.  Estas medições revelaram-se adequadas para a criação de uma primeira geração de produtos a partir de líquidos super-arrefecidos, como aqueles que a sua companhia comercializa. No entanto, as técnicas correntes não permitem obter dados para completar a curva de "viscosidade versus temperatura", e os engenheiros são, na prática, forçados a dar palpites sobre as zonas desconhecidas da curva.

"Há sempre lugar para melhorar os nossos processos de fabrico. Preencher as lacunas na curva de viscosidade permitir-nos-ia encontrar formas de tornar os nossos produtos ainda melhores," afirma Johnson.

A maior lacuna é no meio da curva: quando os líquidos estão ainda muito fluidos ou já muito pastosos a medição é possível, mas na fase intermédia – quando apresentam a fluidez do mel ou do alcatrão – torna-se muito mais difícil, em quase todos os casos, verificar a evolução com a temperatura. Edwyn Ethridge, o investigador principal da experiência FMVM, afirma: "O objectivo fundamental é conseguir dados sobre a viscosidade na faixa das temperaturas intermédias." A experiência é uma demonstração de conceito que utilizará os cálculos de dinâmica de fluidos do professor Basil Antar, especialista dessa área do Instituto Espacial da Universidade do Tennessee, para mostrar de que forma se podem efectuar medições da viscosidade de fluidos não confinados no ambiente de microgravidade que reina na ISS.

Military interest  página web da Agência de Projectos de Pesquisa Avançada de Defesa dos Estados Unidos, sobre metais amorfos.

Center for Structural Amorphous Metals  da California Institute of Technology.

Companhias a trabalhar com metais amorfos: Metglas Solutions, Liquidmetal Technologies

 

 

 

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