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UMA BOLSA DE QUASE-PERFEIÇÃO

 

26 de Abril 2004 - Os engenheiros não entram muitas vezes em floreados poéticos quando discutem as coisas que constroem. Por isso, quando palavras como "belo" e "elegante" e "engenhoso" saem frequentemente da boca dos cientistas e engenheiros quando falam sobre o projecto da sonda Gravity Probe-B , pode-se suspeitar que a sonda é algo verdadeiramente especial.

 

Direita: Usando as mais perfeitas esferas jamais criadas pelo homem, a sonda Gravity Probe-B pode pôr em causa as teorias de Einstein.

 

A sonda, que foi lançada a 20 de Abril de 2004 numa missão para testar  um ponto não comprovado da teoria da teoria da relatividade de Einstein,  é, sob todos os aspectos, uma maravilha do engenho e saber  humanos. Só recentemente se tornou tecnologicamente possível construir a sonda Gravity Probe-B, apesar do facto de a ideia da experiência ter andado no ar desde a década de 50.

 

"Se a ciência experimental é uma arte, então eu olharia para a Gravity Probe-B como uma obra-prima da Renascença," diz Jeff Kolodziejczak, cientista do projecto Gravity Probe-B no Marshall Space Flight Center da NASA.

 

A beleza do projecto Gravity Probe-B reside, em parte, na sua capacidade de criar, no desordenado mundo real, uma bolsa de quase-perfeição. O objectivo da experiência assim o exige. Os investigadores esperam detectar um desvio do espaço-tempo em volta da Terra tão subtil  que mesmo uma interferência mínima de alguma força externa ou uma pequena imperfeição interna na própria sonda mascararia o efeito que eles procuram.

 

A teoria da relatividade geral prevê que a Terra, ao rodar, torce o espaço e tempo em torno desta, formando um vórtice ténue na estrutura do espaço-tempo em torno do planeta. Os investigadores chamam a isso: "arrastamento da estrutura". Muitos físicos acreditam que o vórtice do espaço-tempo é real, mas nenhuma experiência até à  data foi suficientemente sensível para detectá-lo inequivocamente.

 

Entra em cena a  sonda Gravity Probe-B.
 

A ideia por trás da experiência é simples: colocar um giroscópio, em rotação, em órbita em torno da Terra, com o seu eixo de rotação apontado em direcção a uma estrela distante como um ponto de referência fixo. Livre de forças externas, o eixo do giroscópio deve continuar a apontar para a estrela - para sempre. Mas se a região do espaço através do qual o giroscópio orbita está ligeiramente torcido, como a teoria de Einstein prevê, a direcção do eixo do giroscópio deve desviar ligeiramente ao longo do tempo. Ao notar esta mudança na direcção em relação à  estrela, o efeito subtil do "arrastamento da estrutura" pode ser medido.

 

 

Esquerda: Um giroscópio esférico em rotação em órbita terrestre deve oscilar devido ao "arrastamento da estrutura".

 

Parece uma experiência simples; o truque está, na realidade, na sua construção. O eixo do giroscópio não desviará muito, só 0,042 segundos de arco durante um ano, segundo os cálculos.  (Um segundo de arco é igual a 1 / 3 600 de um grau.)  Para medir este ângulo razoavelmente bem, a sonda Gravity Probe-B deve ter uma precisão de 5 x 10-4 segundos de arco.

 

"Todos os aspectos da experiência devem roçar a perfeição," diz Kolodziejczak.  Lidar com este desafio demorou quase 40 anos de esforços de muitos cientistas e engenheiros brilhantes, principalmente da Universidade de Stanford, do Marshall Space Flight Center da NASA e da Lockheed-Martin.

 

"A equipa da sonda Gravity Probe-B teve de criar os giroscópios mais redondos de sempre, e colocá-los em órbita no interior de uma bolsa livre de forças. Nenhuma forma de resistência atmosférica ou forças magnéticas podiam penetrar nas câmaras giroscópicas. Isto é particularmente difícil, porque o extenso campo magnético da Terra  envolve a sonda Gravity Probe-B e, mesmo a uma altitude de 650 km, a atmosfera exterior da Terra exerce atrito na sonda. Além disso, seria necessário medir a inclinação do eixo de rotação do giroscópio sem nunca tocar o próprio giroscópio.

 

Os giroscópios na Gravity Probe-B são as esferas mais perfeitas alguma vez criadas pelos humanos. A experiência, na realidade, leva 4 giroscópios por redundância. Estes giroscópios do tamanho de  bolas de ping-pong de quartzo fundido  e silício têm 3,8 cm de diâmetro e nunca diferem de mais de uma esfera perfeita por mais de 40 camadas atómicas. Isto significa que se estes giroscópios fossem do tamanho da Terra, a elevação de toda a superfície nunca variaria mais do que 3,65 metros! [N.T.: 1 pé (feet) = 30,48 cm.] Se estes giroscópios não fossem tão esféricos, os seus eixos de rotação oscilariam mesmo sem os efeitos de arrastamento da estrutura, arruinando desta forma a experiência.

 

Direita: Um dos giroscópios esféricos usados na sonda Gravity Probe-B.

 

Estando em órbita permite as esferas flutuarem no interior das suas cápsulas como se não tivessem peso, mas sem outros controlos, as esferas em rotação tenderiam ainda a desviar e a embater contra as paredes dos seus contentores. A razão  é que a sonda está a ser  ligeiramente travada pelo atrito aerodinâmico enquanto as esferas, flutuando livremente no interior da sonda, não estão.

 

 

A equipa da sonda Gravity Probe-B resolveu este problema ao desenvolver um satélite livre de atrito.

 

No interior da sonda, instrumentos monitorizam a distância entre um dos giroscópios e as paredes da sua câmara com extraordinária precisão - a menos de um nanometro (uma milionésima de um milimetro). Os propulsores da sonda respondem a quaisquer mudanças nessa separação. Com efeito, a sonda persegue o giroscópio e segue o mesmo caminho orbital "livre de atrito" que aquele faz.

 

As esferas devem estar também protegidas do campo magnético terrestre. Porquê? Porque um ténue sinal magnético dos próprios giroscópios será, no fim, usado para detectar a extremamente importante variação no ângulo dos seus eixos de rotação. A intrusão do campo magnético terrestre abafaria aquele sinal.

 

Mas então como se bloqueia o campo magnético terrestre?

 

"Usámos bolsas supercondutoras", diz Kolodziejczak. O conjunto do giroscópio é colocado no interior de bolsas de chumbo, que por sua vez são colocadas no interior de um grande contentor criogénico chamado  depósito de Dewar [N.T.: "Dewar" é uma abreviatura para "Dewar vessel", frasco de Dewar, que se destina a guardar gases liquefeitos a muito baixa temperatura.] contendo cerca de 1 400 litros de hélio líquido. O hélio arrefece as bolsas de chumbo a 1,7 graus acima do zero absoluto (1,7 K ou cerca de -271 ºC). A esta temperatura o chumbo torna-se um supercondutor, e, desta forma, bloqueia o campo magnético da Terra. O campo magnético ambiente dentro das bolsas é reduzido a menos de 3 microgauss, que é o mesmo do espaço profundo interestelar.

 

Acima: O grande depósito de Dewar da sonda Gravity Probe-B contém centenas de litros de hélio líquido. [N.T.: 1 galão americano=3,4 litros.]

 

O frio extremo também ajuda a criar um vácuo de pressão muito baixa na câmara do giroscópio; depois de bombear a maioria do gás, as moléculas de gás que permanecem, ficam tão frias que mal se movem, o que significa que exercem quase uma pressão nula. Neste ambiente imaculado e de vácuo, o giroscópio esférico pode girar uma velocidade de 10 000 rotações por minuto durante 1000 anos sem abrandar mais de 1%.
 

Finalmente é necessário aferir o eixo dos giroscópios sem o mais pequeno toque no giroscópio.
 

Uma vez mais, recorre-se à supercondutividade. Uma esfera supercondutora, quando gira, produzirá um fraco campo magnético que está precisamente alinhado com o eixo de rotação. Os giroscópios são, por esta razão, revestidos com uma camada metálica de nióbio de uniformidade quase perfeita. À temperatura criogénica no núcleo da sonda, o nióbio torna-se um supercondutor e produz um campo magnético quando as esferas giram. Ao monitorizar o campo magnético, os engenheiros podem monitorizar o eixo dos giroscópios - sem lhes tocar!
 

 

Acima: Diagrama esquemático do método SQUID para medir a inclinação do giroscópio.

 

Para fazer isto, os cientistas usam um dispositivo notável chamado SQUID - acrónimo para "Superconducting QUantum Interference Device." Ligado a uma espiral  de  fio supercondutor envolvendo estreitamente cada giroscópio, o SQUID funciona como um detector de campo magnético hiper sensível. Os SQUIDs podem detectar uma mudança neste campo de apenas 50 milésimos milionésimos de um microgauss (5 x 10-14 gauss) o que  equivale a uma variação de 1 x 10-4 segundos de arco do ângulo do giroscópio.

 

Um telescópio a bordo da sonda observa constantemente uma estrela distante designada de IM Pegasus. Isto serve como um ponto referencial externo para medir a inclinação dos giroscópios. Contudo, IM Pegasus não é, na realidade, um ponto fixo. Desviar-se-á ligeiramente durante os dois anos de tempo de vida da missão Gravity Probe-B. Felizmente os cientistas sabem muito bem quanto vai desviar, portanto esse movimento pode ser tomado em conta.

 

Telescópios, giroscópios. Bolas de chumbo supercondutoras e SQUIDs. Estes são estranhos materiais para fazer arte. Contudo, entre os engenheiros e físicos, não há dúvidas: Gravity Probe-B é uma obra-prima.

 

LINKS

 

Gravity Probe B  da Universidade de Stanford. Página oficial da missão Gravity Probe B.

In Search of Gravitomagnetism  da Science@NASA. Gravity Probe B deixou a Terra para medir uma força subtil da natureza há muito procurada.

Hills and Valleys in GP-B gyroscopes  são medidos em micro-polegadas!

A Review of Gravity Probe B  da National Research Council.

The Search for Frame Dragging  uma visão geral com Matemática de Clifford Will.

A Pop Quiz for Einstein da Science@NASA. A missão da sonda Gravity Probe B testará dois aspectos importantes da teoria da relatividade geral de Einstein.

 

 

 

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