JAMES COOK E O
TRÂNSITO DE VÉNUS
28
de Maio 2004 -
Mais ou
menos a cada 120 anos uma mancha escura
atravessa diante o Sol. Pequena, negra ,
quase perfeitamente circular, não é uma
vulgar mancha solar. Nem todos a podem ver,
mas alguns que o conseguem ficam com uma
sensação estranha, como se estivessem na
praia de uma ilha do Pacífico Sul, com os
dedos dos pés enterrados na areia húmida.
Gaivotas volteavam no
ar, a guinchar. Os cheiros da cidade de
Plymouth passavam pelo navio misturando-se
com a brisa salgada. As velas retesavam-se.
O vento mudara e era altura de partir.
A 12 Agosto de 1768,
o barco de Sua Majestade Endeavour saiu do
porto, com o capitão James Cook no comando,
com destino ao Taiti. A ilha fora
"descoberta" pelos europeus justamente um
ano antes no Pacífico Sul, uma parte da
Terra tão pobremente explorada que os
mapeadores não sabiam se haveria lá um
grande continente... ou não. Cook podia,
também, ter ido à Lua ou a Marte. Ele teria
de navegar através de milhares de
quilometros de mar largo, sem nada como o
Global Positioning System
ou mesmo um bom relógio de pulso para medir
o tempo para navegação, para encontrar uma
pequena porção de terra com cerca de 32 km
de comprimento. No trajecto, tempestades
perigosas podiam (e aconteceu..) ocorrer sem
aviso. Formas de vida desconhecidas
aguardavam nas águas oceânicas. Cook estimou
que metade da tripulação pereceria.
Valia a pena o
risco, concluiu, para observar o trânsito
de Vénus.
"Às 2 da tarde içou
as velas e fez-se ao mar tendo a bordo 94
pessoas," registou Cook no seu diário. O
jovem naturalista do navio, Joseh Banks, foi
mais romântico: "Dissemos adeus à Europa
porque só o céu sabe durante quanto tempo,
talvez para sempre."
Direita:
O Endeavour.
A sua missão
era chegar a Taiti antes de Junho 1769,
estabelecer-se entre os habitantes da ilha,
e construir um observatório astronómico.
Cook e a sua tripulação observariam Vénus a
deslizar sobre a face do Sol, e ao fazê-lo
mediriam o tamanho do Sistema Solar. Ou
assim esperava a Academia Real de
Inglaterra, que financiou a viagem.
O tamanho do
Sistema Solar era um dos principais
mistérios da Ciência do século XVIII, tanto
como a natureza da matéria escura e energia
escura o são hoje. No tempo de Cook, os
astrónomos sabiam que 6 planetas orbitavam o
Sol (Urano, Neptuno, e Plutão ainda não
tinham sido descobertos), e sabiam as
distâncias relativas daqueles planetas -
Júpiter, por exemplo, está 5 vezes mais
longe do que a distância Sol-Terra. Mas qual
seria essa distância... em quilometros? As
distâncias absolutas eram desconhecidas.
Vénus era a
solução. Edmund Halley verificou isto em
1716. Visto da Terra, Vénus ocasionalmente,
atravessa a face do Sol. Parece como um
disco escuro a deslizar por entre as
verdadeiras manchas solares. Registando os
tempos de começo e fim do trânsito de locais
largamente espaçados na Terra, pensou Halley,
os astrónomos podiam calcular a distância a
Vénus usando os princípios da paralaxe. O
resto da escala do Sistema Solar seria fácil
de calcular.
Mas havia um
problema. Os trânsitos de Vénus são raros.
Eles ocorrem aos pares, com 8 anos de
separação, a intervalos de, aproximadamente,
120 anos. O próprio Halley nunca viveria
para ver um. Uma equipa internacional tentou
cronometrar o trânsito de Vénus em 1761, mas
as condições meteorológicas e outros
factores inutilizaram muitos dos seus dados.
Se Cook e outros falhassem em 1769, todos os
astrónomos da Terra estariam mortos antes da
próxima oportunidade em 1874.
A expedição
de Cook é muitas vezes comparada com uma
missão espacial. "O Endeavour não era
só uma viagem de descoberta," escreve Tony
Horwitz no livro Blue Latitudes, o
diário de navegação de Cook, "era também um
laboratório para testar as últimas teorias e
tecnologias, tal como as naves espaciais o
são hoje."
Em
certo
sentido, a tripulação da Endeavour estavam
a ser as cobaias na luta da Marinha contra
"o flagelo do mar" -- o escorbuto. O corpo
humano pode armazenar vitamina C
apenas apenas para 6 semanas, findas as
quais surgem hemorragias, astenia (falta de
forças) e gengivas apodrecidas. Algumas
embarcações do século XVIII perdiam metade
da sua tripulação devido ao escorbuto. Cook
transportou uma grande variedade de
alimentos experimentais a bordo, alimentando
a sua tripulação com coisas como couve
fermentada (choucroute) e malte de cerveja
não fermentado. Quem recusasse a comida
seria chicoteado. Na verdade, Cook açoitou
um em cada cinco da sua tripulação, mais ou
menos a média naquela época, segundo Horwitz.
[N.T.:
Sauerkraut (choucroute
em francês) é couve fermentada. Óptimo para
acompanhar pratos de origem alemã, como
joelho de porco ou alguns tipos de
salsichas.]
Esquerda:
Retrato de Cook, óleo em
tela, Nathanial Dance, 1735-1811.
Na altura em
que Cook chegou a Taiti em 1769, ele tinha
viajado para Oeste durante 8 meses - tanto
tempo como os actuais astronautas gastariam
a chegar a Marte. Cinco tripulantes
desapareceram quando o navio rondou o
tempestuoso Cabo da Esperança, e outro
marinheiro desesperado atirou-se borda fora
durante a travessia de 10 semanas do
Pacífico. O Endeavour estava bastante
vulnerável quando aproou ao Taiti. Não havia
contacto com o "controlo da missão", não
havia imagens satélite para avisar de
tempestades vizinhas, não havia qualquer
tipo de ajuda. Cook navegou usando
ampulhetas e cordas com nós para medir a
velocidade do navio, e um sextante e
almanaque para estimar a posição do
Endeavour pelas estrelas. Era difícil e
perigoso.
[N.T.:
Faça-se justiça. Tudo isto fizeram os
portugueses 250 anos antes, com muito menos
meios. Cook já tinha conhecimentos herdados.
Os portugueses tiveram de inventar e criar.]
Surpreendentemente, chegaram quase todos
ilesos a 13 de Abril de 1769, quase dois
meses antes do trânsito. "Nesta altura nós
tínhamos muito poucos homens na lista dos
doentes... a companha (tripulação de navio) estava em geral
bastante saudável, devido em grande parte à
couve fermentada," escreveu Cook.
Taiti era
tão estranho para os homens de Cook como
Marte o parece para nós actualmente. Nenhum
fato espacial era necessário para
sobreviver. Pelo contrário, a ilha era
confortável e bem apetrechada para vida
humana; os habitantes da ilha eram amigáveis
e simpáticos para conviver com os homens de
Cook. Banks viu "o mais genuíno quadro de
uma arcádia idílica e pacífica... que a
imaginação pode criar." No entanto a flora,
a fauna, os costumes e hábitos de Taiti eram
muito esmagadoramente diferentes dos de
Inglaterra; a tripulação de Endeavour
ficou embevecida.
Direita:
A vista do
Ponto de Vénus,
Taiti, onde Cook e os seus homens observaram
o trânsito de Vénus. Óleo em tela,
William Hodges, 1744-1797.
Não admira
que Cook e Banks tivessem tão pouco a dizer
sobre o trânsito, quando este finalmente
ocorreu a 3 de Junho de 1769. O disco escuro
de Vénus, que podia ser visto a deslizar
sobre o disco encandeante do Sol através de
telescópios especiais trazidos de
Inglaterra, não poderia competir com o
próprio Taiti.
A entrada
do diário de Banks do dia do trânsito
contém 622 palavras; menos de 100 referentes
a Vénus. Maioritariamente ele escreveu uma
crónica de um encontro de pequeno-almoço com
Tarróa, rei da Ilha, e a irmã de Tarróa,
Nuna, e, a visita, mais tarde, de "três
mulheres bonitas". De Vénus, diz, "juntei-me
aos meus companheiros no observatório,
levando comigo Tarróa, Nuna e alguns
servidores do seu chefe; mostrámos-lhe o
planeta sobre o Sol e fizemo-los entender
que viemos de propósito para ver isso.
Depois disso eles regressaram e eu com
eles." Nota. Se o Rei ou o próprio Banks
ficaram impressionados, Banks nunca o disse.
Cook foi um
pouco mais pormenorizado: "Este dia foi tão
favorável ao nosso objectivo como
desejávamos; nenhuma nuvem foi vista... e o
ar era perfeitamente limpo, portanto tivemos
todas a vantagens que podíamos desejar ao
observar toda a passagem do planeta Vénus
diante do disco solar: nós vimos muito
distintamente uma atmosfera ou sombra
obscura a rodear o corpo do planeta o que
prejudicou o registo dos tempos dos
contactos, em especial dos contactos
internos."
A "sombra
obscura a envolver o corpo o planeta" foi um
problema. A filtragem da luz solar intensa
na atmosfera de Vénus tirou a nitidez do
limbo do disco e diminuiu a precisão com que
Cook pôde cronometrar o trânsito. Por esta
razão, as suas medições divergiram das do
astrónomo do navio Charles Green, que
observou o trânsito ao lado de Cook, em
quase 42 segundos.
Abaixo:
Desenhos do
trânsito de Vénus de
1769 por
James Cook.
Cook e Green
também observaram o "efeito de gota negra".
Quando Vénus fica próximo do limbo do Sol --
o momento crítico para cronometrar o tempo
-- a escuridão do espaço para além do limbo
do Sol parece chegar e tocar no planeta.
Pode recriar o efeito de gota negra com o
seu polegar e o dedo indicador: mantenha os
dois em frente de um olho e estreite a
distância entre eles. Antes de se tocarem,
uma pequena ponte sombreada preencherá o
espaço entre eles. Segundo
John Westfall, que escreveu para a revista
Sky & Telescope de Junho 2004, "isto é
simplesmente o resultado de como dois
gradientes brilhante-escuro indistintos se
unem." O efeito de gota negra, e a falta de
nitidez de Vénus, tornaram difícil
determinar quando é que o trânsito começou
ou acabou.
Isto foi um
problema para os observadores noutros
locais, também, e não só para Cook, no
Taiti. Qualquer observador, mas, não só para
Cook em Taiti. De facto, com tudo feito e
registado, as observações dos trânsitos de
1769 em 76 pontos do globo, incluindo o de
Cook, não foram suficientemente precisos
para determinar a escala do Sistema Solar.
Os astrónomos não o conseguiram até século
XIX quando usaram a fotografia para registar
o próximo par de trânsitos.
Cook não
ligava muito a estes assuntos; havia muito
mais para explorar. Ordens secretas da
Marinha indicaram-lhe para deixar a ilha
quando o trânsito terminasse e "procurar
entre Taiti e Nova Zelândia por um
continente ou terra de grande extensão."
Durante
grande parte do próximo ano Endeavour
e a sua tripulação exploraram o Pacífico
Sul, procurando por um continente que alguns
cientistas do século XVIII clamavam ser
necessário para equilibrar a grande massa de
terras do Hemisfério Norte.
A certa altura estiveram sem avistar terra
durante dois meses.
[N.T.:
Vasco
da Gama, 270 anos antes, partiu de Cabo
Verde, navegou 93 dias pelo mar largo, sem
avistar terra, até aportar em Melinde, na
costa oriental de África.]
Mas
a terra australis incognita, a
desconhecida "terra do Sul", não existia,
tal como Cook suspeitava. No caminho, Cook
encontrou Maori agressivos da Nova Zelândia
e aborígenes da Austrália (encontro de ambas
as raças lamentariam em anos posteriores),
explorou centenas de quilometros da costa (Neo
Zelandesa e Australiana), e teve quase uma
colisão desastrosa com a grande barreira de
coral.
Acima:
O
Endeavour ancorou na Austrália depois de
uma colisão com a grande barreira de coral.
Uma imagem
de An Account of the voyages de John
Hawkesworth.
Mais tarde,
durante uma paragem de 10 semanas em Jacarta
para reparações, sete marinheiros morrem de
malária. A cidade portuária era densamente
habitada por homens e doenças. Cook deixou-a
tão rápido quanto possível, mas o mal estava
feito. Os últimos 38 da companha original
de Endeavour pereceram incluindo o
astrónomo Charles Green, a maioria de
doenças apanhadas em Jacarta. "A taxa de
mortalidade de 40% do navio não era
considerada extraordinária naquela época",
escreve Horwitz. "De facto, Cook seria mais
tarde louvado pela preocupação excepcional
com a saúde da tripulação."
A 11 Julho de
1771, Cook regressou a Inglaterra em Deal. A
tripulação sobrevivente do Endeavour
tinha circum-navegado o planeta, catalogado
milhares de espécies de plantas, insectos e
animais, encontrado novas (para eles) raças
de gentes, e buscado continentes gigantes.
Fora uma aventura épica.
Vistas as
coisas, o trânsito fora apenas uma pequena
parte da aventura de Cook, encantado por
Taiti e sabotado pelas gotas negras. Mas por
causa da viagem, Cook e Vénus estão ligados.
De facto, pode dizer-se que a melhor razão
para ver um trânsito de Vénus é James Cook.
Decida por si
próprio. A 8 de Junho 2004, Vénus irá passar
defronte o Sol outra vez. O evento será
mostrado via web, emitido, e será alvo de
inúmeros telescópios . Por outras palavras,
não pode perder o transito. Olhe para o
disco preto. Pode transportá-lo de volta a
um local e tempo diferente: Taiti, 1769,
quando muito da Terra era ainda um mistério
e o olho no telescópio pertencia a um grande
explorador.
Pode sentir a
areia nos seus dedos dos pés?
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